A chamada pelos especialistas de “espiral da violência”, ou seja, a divisão da violência nas seguintes fases, a priori se inicia por uma tensão, logo em seguida vem à agressão e a terceira fase é de reconciliação, também chamada como fase da lua de mel.
Pode por assim dizer que a espiral da violência se inicia lentamente dentro de um relacionamento, ou seja, de uma forma sutil e vai se intensificando com o desenvolver do relacionamento e conforme o agressor vai ganhando mais confiança ao perceber que tem mais poder sobre a vítima.
Sendo assim, a violência pode ocorrer de diversas formas e lamentavelmente apenas no ano de 2017, em menos de dois segundos e meio uma mulher se tornava vítima, conforme descreve Olívia Henriques e Tatiana Regadas, G1 SP:
A cada dois segundos uma mulher é vítima de violência física ou verbal no Brasil. A cada 1.4 segundo uma mulher é vítima de assédio. Os dados são do Instituto Maria da Penha e usam como base a pesquisa Datafolha encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública realizada em fevereiro de 2017, em 130 municípios. (HENRIQUE, 2018, https://g1.globo.com).
Entretanto esses números não refletem toda e verdadeira realidade que vivemos, pois sabemos que infelizmente são muito mais elevados, ou seja, lamentavelmente inúmeros outros casos, não entram na estatística, pois não são denunciados, e um dos principais motivos para que essa denúncia não ocorra, conforme relata Olívia Henriques e Tatiana Regadas, G1 SP:
Um dos motivos é o medo de que, na hora da denúncia, a mulher será desacreditada. O Brasil possui delegacias especializadas no atendimento à mulher, mas, apesar disso a reprodução de comportamentos machistas afasta a vítima.
“Quando uma mulher denuncia assédio, ela sofre violência em dobro. Vão questionar suas vestimentas, sua conduta, o horário em que ela estava na rua, vão minimizar seu relato, questionar sua palavra. E isso acontece em todas as instâncias, do ambiente doméstico à delegacia, passando pelo hospital”, diz Maíra, que desde 2013 trabalha para levar informação de temas importantes ao público feminino ( BRASIL, 2006).
Conforme o presente artigo descreve a principal barreira ainda é o medo e até mesmo a vergonha, pois as mulheres que são agredidas, ainda nos tempos atuais sofrem com o preconceito, mesmo que todos neguem . Vivemos ainda em uma sociedade machista e patriarcal, onde o homem vale de certa forma, mais que a mulher, basta verificar as relações trabalhistas onde a mulher mesmo exercendo a mesma função que um homem, nem sempre ganha o mesmo salário, ou tem as mesmas oportunidades.
E ao adentrar a espiral da violência, se faz necessário descrever cada fase da violência de uma forma isolada.Vamos dar inicio descrevendo essa que normalmente e a última fase que ocorre dentro dessa espiral, ou seja, a violência física ou a fase da agressão. E para uma melhor compreensão iremos utilizar o conceito trazido pelo no art. 7º, I da Lei Maria Da Penha, ou seja: “a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal” (BRASIL, 2006).
Desta forma e para um melhor esclarecimento vamos utilizar a história de vida de Alice, uma jovem de 37 anos, mãe de uma filha de um ano e meio, moradora de Porto Alegre, ou seja,uma sobrevivente, que encontrou coragem para contar sua história, conforme ela mesma relata, em uma entrevista concedida a Marina Simões e Schirlei Alves, tudo ocorreu após um jantar em uma véspera de feriado de Tiradentes:
Com gosto amargo, o jantar acabou mais cedo. Já no carro, Marco deu partida, mas não tomou o caminho de casa. Ele dirigiu até uma rua erma, onde havia apenas um campo e um terreno baldio. Estacionou e mandou que a mulher descesse. Alice tentou resistir, em vão.
O primeiro golpe foi um chute, que atingiu o abdômen da companheira e também a mão da menina, que estava em seus braços. As duas caíram e a criança rolou no chão. Quando a mãe conseguiu alcançar e abraçar a filha, Marco continuou a agredindo com chutes e pontapés na cabeça, nas costas, nas pernas, por todo o corpo.
Apesar da escuridão, Alice conseguiu enxergar que carros passavam por ali. Assim como aquelas pessoas também poderiam vê-la. Os gritos de socorro saíram de sua boca, mas a ajuda não chegou. (SIMÕES, 2017, https://ndmais.com.br).
O agressor de Alice só parou, por medo de alguém ter visto a cena, eles voltarão para o carro, e ele indaga se ela queria ir ao hospital ou para delegacia, ela escolheu o hospital, chegando lá o médico no momento do atendimento pergunta a Alice o que havia acontecido com ela? E ela respondeu, “cai da escada”. O Profissional a alerta que muitas vezes essas quedas de escadas são fatais, claro que ele havia desconfiado do acontecido e de uma forma sutil quis alertar do risco que ela estava correndo.
Obviamente que seu agressor para evitar qualquer tipo de questionamento, a levou para um hospital particular. Alice como a maioria das vítimas, não denunciou seu agressor de imediato, pois ela mesma, não compreendia que estava vivendo dentro de uma espiral de violência,e essa era a fase da agressão aguda, mas como ela mesma relata o seu marido “ele era um príncipe encantado”.
Entretanto antes de ocorrer à violência física, ocorreu a violência psicológica, ou seja, o conceito de violência psicológica conforme vem descrito no artigo 7º,II:
A violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, violação de sua intimidade, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação; (Redação dada pela Lei nº 13.772, de 2018). (BRASIL; 2006).
A violência psicológica não deixa marcas físicas, ou melhor, dizendo, não são tão visíveis para a sociedade, as suas marcas perdura no psicológico das vitimas e demoram bem mais para serem curadas, quando são possíveis de serem curadas. Desta forma, continuaremos fazendo uso do caso de Alice, conforme corajosamente a mesma descreve para Marina Simões e Schirlei Alves:
“Eu queria tanto que desse certo, que eu ceguei para tudo. Aí, começou aquela fase de que as roupas que eu vestia não eram adequadas. Parei de usar brinco. Batom vermelho era coisa de vagabunda. Pintar a unha de vermelho, então… Nossa! Era o fim do mundo. Mas ele sempre dizia assim: ‘Eu tô te ensinando a ser uma mulher de verdade’. E eu queria ser uma mulher de verdade”, conta Alice. De acordo com a psicóloga Caroline Gama, a violência contra a mulher é caracterizada por qualquer ato de violência baseado em gênero, que tem como consequência algum tipo de dano ou sofrimento, incluindo ameaças, coerção ou privação da liberdade.(SIMÕES, 2017, https://ndmais.com.br).
Alice estava vivendo a fase da tensão dentro da espiral da violência, também pode ser denominada de violência psicológica, ou seja, onde pode ocorrer humilhação, insulto, gritos, ameaças, intimidação, pois o agressor quer ter total controle sobre a vítima. Dando inicio ao isolamento total do indivíduo, medo, conflito e até mesmo descumprimento de promessas.
Alice relata ainda que seu ex-marido tinha o total controle de suas mensagens trocadas nas redes sócias com seus amigos, fazendo com que ela se afastasse de todos.Fazendo também que ela se afastasse de seus pais e de sua irmã. E que mesmo assim ela não enxergava que estava vivendo dentro de um ciclo abusivo, pois ele dizia que estava fazendo dela “uma nova mulher”. E de certa forma ela queria ser uma nova mulher, como ela mesmo disse, “eu queria tanto que desse certo”. Que nem notava que estava sofrendo essa agressão emocional tão grave quanto à agressão física.
Alice também viveu a fase da violência patrimonial, ou seja, onde toda a renda da família fica concentrada na mão do Marido/Companheiro, fazendo com que a mulher se torne totalmente dependente do seu agressor. Alice conta como essa violência aconteceu em sua vida, na mesma entrevista concedida a Marina Simões e Schirlei Alves:
Eu estava desaparecendo. Eu tinha que cuidar da empresa, da casa, da filha, da vida social dele, da agenda dele”, lembra Alice. Apesar dos serviços que prestava na empresa do marido, ela conta que durante todo o tempo em que trabalhou com ele, não viu sequer um centavo. A renda da família ficava concentrada nas mãos de Marco e, sempre que precisava de dinheiro, ela tinha que pedir para ele ( SIMÕES, 2017, https://ndmais.com.br).
Essa violência a qual podemos buscar sua definição em nosso Código Penal nos artigos, 155, 163, 168, ou seja, furto, dano e apropriação indébita, a qual podemos nós atrever a dizer que mais da metade das mulheres em nosso País, já sofreram ou ainda vão sofrer, com esse tipo de violência, sem nem mesmo perceber que se trata de uma violência, pois foram criadas dentro de um sistema patriarcal, onde sua mãe, já vivia dessa forma e a mãe dela também, ou seja, o que lhe faz parecer normal, essa situação. Mas não é, cabendo sequelas e medidas penais.
A fase da violência moral, ou seja, essa violência que ocorre através xingamentos ou até mesmo de apelidos ofensivos, vexatórios, também aconteceu com Alice, conforme seu relatado a Marina Simões e Shirlei Alves:
O assunto ainda dói em Alice, tanto que ela preferiu não citar exemplos dessa violência. “Eu não gostava. Daí, o que eu fazia, eu pedia para ele: ‘pelo menos não me chama assim na frente dos outros. Se quer me chamar assim, me chama em casa’. Mesmo assim, volta e meia ele deixava escapar”, relembra.
“Conforme a mulher vai permitindo, cedendo, o homem vai aumentando o comportamento abusivo, pois vai percebendo que existe espaço para intensificar as atitudes nocivas (SIMÕES 2017, , https://ndmais.com.br).
Essa violência vai ocorrendo conforme a mulher “vai baixando a cabeça”, ou seja, dando espaço, ela vai permitindo e aceitando o comportamento abusivo do companheiro, esse comportamento que afronta a sua autoestima, vai se intensificando e passando para as outras fases da espiral. Igualmente não podemos deixar de citar que a violência moral encontra proteção em nosso Código Penal em seus artigos, 138, 139, 140, ou seja, contra calúnia, difamação e injúria, que quando praticados em decorrência de vínculo de natureza familiar esses delitos que protegem a honra, configura a violência doméstica.
Alice infelizmente sofreu todas as fases da violência, até mesmo com a violência sexual, conforme vem conceituado no art. 7º, III, em verbis:
III – a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos […]. ( BRASIL, 2006).
Entretanto historicamente e lamentavelmente há resistência em se admitir a possibilidade do crime de violência sexual, dentro das relações familiares, ou seja, o sexo é tratado ainda hoje como dever conjugal ou debito conjugal, como descreve Maria Berenice Dias“ a horrível expressão “debito conjugal” parece chancelar tal proceder, como se a mulher tivesse o dever de submeter-se ao desejo sexual de seu par ”( DIAS, 2019).
As mulheres cedem ao homem por achar ser sua obrigação, pois foram criadas com a ideia de que as mulheres devem servir ao seu marido, que mulher nunca ouviu aquela lamentável frase “o homem procura na rua o que não encontra em casa”, muitas vezes sendo dito por suas próprias mães, antes destas mulheres subirem ao altar. No caso de Alice conforme seu relato a Marina Simões e Schirlei Alves:
“Tinham algumas coisas que ele gostava que eu não concordava. Eu acabava cedendo, às vezes até para me livrar”, conta Alice sobre a vida sexual do casal. Segundo ela, Marco dizia ser viciado em sexo e que precisava realizar o ato sexual no mínimo três vezes por dia. “E eu era obrigada a dizer que eu tinha gostado e que para mim tava muito bom, que ele era o melhor homem do mundo”, lembra(SIMÕES, 2017,https://ndmais.com.br).
É lamentável, mas ainda em pleno século XXI vivemos em uma sociedade machista que diz, que deve prevalecer o desejo do homem. Esse mesmo homem que na maioria das vezes não se preocupa se a mulher está cansada, se aquele tipo de relação não a machuca de alguma forma, se ela realmente está com vontade/desejo de fazer sexo, ou seja, mulher também tem que sentir desejo, tem que está a fim, de manter uma relação sexual.
E absurdamente ainda se escuta dizer que o órgão genital feminino, “é só de abrir”, ou seja, não tem porque elas dizerem não.
A mulher tem que aprender desde o berço, que podem sim, dizer não! E para isso se faz necessário rever como estamos criando os nossos filhos, se não estamos apenas repetindo os erros do passado.
Não podemos deixar de citar que a espiral de violência também conta com a fase da Lua de Mel ou reconciliação que vai intercalando entre todas as outras fases, ou seja, com promessas de que nunca mais ira acontecer, presentes, carinho, paixão. Desta forma, para um melhor entendimento disponibilizo em meu livro a figura 1 que demonstra com clareza como ocorre a espiral de violência dentro dos relacionamentos.
A espiral da violência lamentavelmente faz parte da vida de inúmeras mulheres que nem sequer percebe está vivendo algum tipo de violência. No caso de Alice, a mesma em sua entreviste relatou que após a violência física sofrida, naquela véspera de feriado de Tiradentes, procurou ajuda e conseguiu fugir, ou seja, tornou se uma sobrevivente e teve a oportunidade de recomeçar. “Infelizmente, nem todas as mulheres que chegam a essa fase, tem a mesma sorte” (SIMÕES, 2017, <https://ndmais.com.br>).
O fato é que lamentavelmente o ultimo estagio para algumas mulheres acaba em seu assassinato, melhor dizendo, em feminicídio tentado ou consumado, por esse motivo o Código Penal foi alterado incluindo o feminicídio em seu art. 121, § 2º, VI, passando a ser uma qualificadora do homicídio doloso, com isso aumentando à pena, mudança essa trazida pela Lei 13.104/2015 (PEREIRA, 2017, https://g1.globo.com). Sendo essa mais uma tentativa do Estado de coibir esse tipo de crime.
Decidi trazer mais uma parte do meu livro, ou seja, UMA ANÁLISE CRÍTICA AOS 14 ANOS DA LEI MARIA DA PENHA NO BRASIL: DESAFIOS E PERSPECTIVAS. Devido o grau de relevância do tema e ser infelizmente um tema ainda muito presente em nossos dias. E não se esqueça a informação é e sempre será a melhor arma para termos sempre em mãos.
Ligue 180, se estiver precisando de ajuda ou conhecer alguma mulher que vive em situação de violência!
Livro: UMA ANÁLISE CRÍTICA AOS 14 ANOS DA LEI MARIA DA PENHA NO BRASIL: DESAFIOS E PERSPECTIVAS. Disponível em amazon.com.br.